Descrição da foto para pessoas com deficiência visual: Deborah Prates vestindo uma camiseta com a palavra "SORORIDADE" escrita em amarelo sob um fundo preto. Em volta da palavra, que está disposta na camiseta por sílabas - uma em cima da outra - há cinco pares de mãos unidas. Deborah fala ao microfone. Ao fundo, a parede é branca e, no canto esquerdo, há um quadro de moldura dourada.
Frequento alguns coletivos feministas
na Cidade Maravilhosa. Um deles realizou, neste final de março, um evento em um
cinema. Antes do filme aconteceu um debate com abordagem feminista. Pensei em
não ir pela ausência de audiodescrição para o filme que seria exibido após a
roda de conversa.
É que eu já havia solicitado e
reiterado essa acessibilidade e, em resposta, ouvi o de praxe: - Ah, não temos
recursos. Dormi arrasada. Acordei fortalecida e com a certeza de que deveria
ir. Fui!
Dei sorte por que fui convidada para
falar pelo movimento. Então, fiz questão de enfatizar que não faria um mero
desabafo, como comumente ouço as moças dizerem, e sim uma nova reivindicação
para a efetivação dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência. Contei
à plateia a importância da audiodescrição para a compreensão do contexto do
filme. Alertei que se houvesse sororidade e solidariedade dos humanos sem
deficiência, com o mesmo dinheiro poderia ter sido decidido pelo filme dublado.
Seria uma boa chance de exercitar a acessibilidade atitudinal, de sorte que
pouco importaria se muitos e muitas só gostassem de filmes na suas línguas
originais. Finalizei informando que as acessibilidades compunham o rol dos
nossos direitos fundamentais e que não poderíamos falar de democracia sem
igualdade e liberdade sem acessibilidade. Despedi-me informando que não ficaria
para o filme por todos os motivos já explicados. Afinal, nunca perdi a minha
dignidade!
Na saída ouvi vozes femininas
retrucando os meus argumentos. Revidavam que eu não poderia ter dito tudo o que
disse ali, já que não seria o momento certo para "desabafar".
Percebi naquelas vozes a encarnação da
opressão pelo poder das mulheres sem deficiência contra as suas iguais com
deficiência. Pena que a minha manifestação fora renegada às escondidas! Ah, se
elas tivessem me chamado e não retrucado por trás!
Inequívoco o olhar assistencialista que
retira as mulheres com deficiência de cena! Vivemos tuteladas. Sem
independência e autonomia até para fazer as próprias escolhas!
Voltando para casa, no saculejo do
metrô, lembrei-me da obra do antropólogo Roberto da Matta, "O que faz o
brasil, Brasil?" Os argumentos tocantes às desigualdades no ano de 1985 se
encaixavam como uma luva naquela sofrida experiência.
O autor demonstra que o povo brasileiro
adora a desigualdade. Porém, sempre dá um jeitinho de conciliar as visões
diferentes, fingindo uma harmonia entre todas e todos. Procura agregar os
opostos numa mesma fôrma. Contudo, com muita sutileza, sabe deixar nítido quem
são os brasileiros principais e, no contraponto, quem são os brasileiros
coadjuvantes.
A questão é que a nossa sociedade não
constrói barreiras físicas claras. Mas, ninguém tem dúvidas de que elas existem
no nosso cotidiano.
A desigualdade traz a ideia de que
existem pessoas melhores que outras. No nosso Brasil, em tese, os desiguais
convivem nos mesmos espaços num tom de igualdade formal. Todavia, a diferença é
patente. Não pelas barreiras físicas, mas pelas barreiras simbólicas, atitudinais.
O exemplo do vestibular dá a impressão
de que todos concorrem igualmente. Mas, sabemos que a maioria que passa para as
universidades públicas vem de escolas particulares. É um país de faz de conta.
A noção de igualdade nunca pegou no Brasil.
A nossa história é feita de privilégios
atrás de privilégios. Tenho a impressão que o brasileiro parece ter vergonha
desse modo de viver, pelo que finge se misturar com os diferentes. E, por esse
jeitão, inventou uma hierarquia de valores. É tudo simbólico, velado, maquiado.
Funciona assim: a pele branca vale mais
que a pele negra; a pessoa sem deficiência vale mais que a pessoa com
deficiência; o brasileiro jovem vale mais que o idoso, etc. O brasileiro que
ostenta um símbolo, acertado como maior pela sociedade, tem mais direitos. Há
um véu da igualdade passando por trás das desigualdades. Naquele cinema éramos
todas iguais! A prova estava nas imagens de uma mulher com deficiência e outra
negra no palco.
As pessoas com deficiência, ainda em
2017, são - simbolicamente - tidas como quase alguém. Como quase
brasileiras. Assim, o CNJ baixou a
Resolução 185/2013. É o famoso PJe. Esse sistema de peticionamento eletrônico
não fora desenvolvido conforme o Consórcio W3C, de modo que baniu os advogados
cegos da advocacia ante a ausência das acessibilidades. Esse mau exemplo não
deixa dúvida de que, de modo simbólico, as pessoas sem deficiência têm peso
maior que as "iguais" com deficiência.
Nessa balada a sociedade vai
eternizando o preconceito sobre as pessoas com deficiência e IGNORANDO,
solenemente, a efetivação das acessibilidades como direito fundamental desse
seguimento.
Nos movimentos feministas a situação se
repete. Nas reuniões eu falo, falo, falo... Nada acontece. Mas, a causa é
bonita! Os políticos adoram! Deixamos as fotografias com um ar de inclusão para
serem postadas no facebook em busca de dezenas de curtidas e comentários
clichês. Ai, maldito véu da igualdade que recobre as nossas cabeças!
Normal, pois, o comentário das mulheres
sem deficiência depois da minha constitucional manifestação. Essas opressoras
não sabiam o que falavam. A ignorância é que atravanca o progresso.
Diziam que eu tinha que esperar. O quê?
A morte? A Lei de Cotas, por ilustração, tem 26 anos sem cumprimento. A nossa
Convenção de Nova Iorque (com status de Emenda Constitucional) tem 9 anos e não
é cumprida. Temos a melhor legislação do planeta totalmente ignorada pela
sociedade brasileira. E as moças vêm dizer que não era hora de falar, de brigar
pela efetivação dos nossos direitos fundamentais!
Qual será a nossa hora de reivindicar o
cumprimento das leis? Querem nos amordaçar! Não! Para os que têm uma crença
religiosa, talvez na vida eterna seja o momento oportuno. Vivemos no tempo
presente. No aqui e agora. Quem restituirá às pessoas com deficiência o tempo
de vida perdido? Mulheres sem deficiência oprimindo as suas iguais com
deficiência! Pode isso?
Roberto da Matta intitula esse
comportamento como desigualdade simpática. A tradução desse termo para o caso
exposto é: eu sou a sua opressora e vou sugar o seu sangue até a última gota.
Mas, o farei de modo simpático. E você - mulher com deficiência - me sorrirá de
volta para os registros fotográficos. Somos absurdamente desiguais, mas vamos
fingir que somos iguais! Num clique somos deletadas, caramba!
Por essa desigualdade simpática é que
fica muito difícil combater os preconceitos e seguidas discriminações.
Os movimentos feministas hão que
entender que enquanto existirem as discriminações negativas deverão existir as
discriminações positivas. Não tenho dúvida de que é a sociedade que tem que
sair da inércia, da zona de conforto e enxergar a outra e o outro com
deficiência e as diversidades em geral. Quem é a cega nessa narrativa?
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