Cartoon de Ricardo Ferraz. Descrição de Imagem: Em um restaurante, um casal está sentado à mesa. Trata-se de um encontro. O rapaz examina o cardápio. A moça, bem vestida, cadeirante, recebe um agradinho do garçom na cabeça, que a trata como criança e pergunta: “Vai papá, né?”
DE MESA EM MESA - NOS BARES DA VIDA!
UM
PÉ NO PRESENTE E OUTRO NO FUTURO!
Fui
convidada por um jornal, juntamente com um amigo cego (WALDIR LOPES) para uma
matéria, sendo o público alvo pessoas que frequentam bares e afins. Os
jornalistas quiseram conferir como está a ACESSIBILIDADE nesses locais com os
olhos voltados para os jogos internacionais que estão chegando. Senti-me
honrada por participar da 2ª edição desse tabloide.
No dia 18 de outubro/2011, às 18:00
horas, estávamos entrando no "Bar da Garrafa", localizado na esquina
da Rua Men de Sá com Lavradio, no centro do RJ. Hodiernamente essa região
transformou-se num ponto de encontro entre pessoas de todas as idades.
Certamente, será muito frequentado por ocasião dos vários eventos desportivos
que vêm por aí.
Legal a ideia de já conferirmos esse
aspecto!
- Waldir, coloque a mão no meu ombro
e deixemos que Jimmy nos leve. Fique à direita com a sua bengala.
- Tudo bem!
Comandei Jimmy para que entrasse. De
cara ouvimos voz masculina.
- Aqui não pode entrar cachorro!
- Esse não é cachorro! São meus
olhos. Ele entrará por força de lei!
E fomos adentrando até que ouvimos
nova voz.
- Cachorro não pode entrar!
- Jimmy pode. Por favor, arrume uma
mesa bem posicionada para que ninguém pise em Jimmy. Depois de acomodados posso
mostrar a legislação, bem como a documentação do guia.
Equipe totalmente despreparada para
recepcionar o deficiente visual. Não sabiam como fazer. Inseguros, mas
atenderam ao pedido. Percebi que não sabiam como nos recepcionar.
- Alguém vá à frente batendo na
coxa. Comandarei Jimmy para seguir. Por favor, batam na cadeira que irei
sentar. Jimmy a encontrará. Sinto que estão muito agarradas uma nas outras.
Antes, acomodem meu amigo.
Então, constatei que estavam em dois
garçons e fizeram, exatamente, como solicitado. O astral já era bom e o ritmo
era de humildade.
Superado o impacto com Jimmy. O bar
ainda estava vazio. Waldir sentou-se de um lado e eu a sua frente. Jimmy ficou
super confortável deitado ao lado da minha cadeira.
Percebemos vozes amigas em mesa
próxima. Era a Equipe de reportagem e alguns amigos que nos acompanhavam. O
combinado foi que pediríamos um chope, uma porção de azeitonas e uma pizza.
Interagimos com os garçons.
Perguntei se eles estavam habituados com clientes cegos.
- Não senhora! É a primeira vez que
atendemos deficientes visuais.
- Então, nós iremos dando as dicas
acerca das nossas necessidades para todos, tudo bem?
- Sim, tudo bem! - Respondeu o garçon.
Waldir perguntou pelo cardápio em
braile...
E veio a resposta rápida: - Não temos!
Repliquei:
- Ah! Mas precisam providenciar!
Penso que no IBC vocês poderão obter informações dessa confecção. Vocês
precisam estar preparados para os jogos! O fluxo de pessoas aumentará
sensivelmente. Claro que pessoas cegas e com outras deficiências comporão esse público.
Waldir pediu um guaraná e eu um suco
de laranja. Muito atrapalhados estavam os dois garçons que nos atendiam. Não
sabiam como colocar as bebidas para que pegássemos. Notamos um certo
nervosismo.
Então, orientei: - Por favor, coloquem meu copo na minha frente que eu irei
procurá-lo. Vocês não devem mudar os objetos de lugar na mesa sem, antes,
informar aos cegos. Essa atenção evitará acidentes e também demonstra respeito
por nós.
Waldir concordou e desse modo foi
feito. Pensei continuar falando com os garçons. Logo notei que falava sozinha.
Ambos se retiraram sem nos avisar! O amigo disse que pediria que eles
atendessem quando levantássemos o braço. No retorno concordaram de modo bem
simpático.
O pratinho de azeitonas fora trazido
e depositado na mesa com a observação:
- A azeitona está aqui!
Claro que interatuamos de pronto!
- Mas onde é "aqui"?
Quando vocês falarem com pessoas cegas hão que ser mais precisos! Dizer para um
cego: Aqui, ali, lá, até este lugar, e outras informações vagas de nada
adianta. Vocês devem ser certeiros. Digam: Para a direita, para a esquerda,
para frente, para trás, um pouco a diagonal, etc...
Senti que pessoas ouviram
atentamente, até porque fiz questão de falar - não em grito - mas em tom alto,
de modo a alcançar um fim pedagógico.
Waldir pediu um pratinho para
colocar os caroços. E, ao chegar, tivemos que ratificar tudo quanto já havíamos
dito! Perguntamos pelos palitos. Pegaram as nossas nãos para que sentíssemos
que estavam numa lateral perto das azeitonas. Então, pedimos para que fossem
espetados nos frutos da oliveira. Após passamos as mãos - sobrevoando o local -
de maneira a mostrar como os palitos fincados nos davam maior conforto!
Como tinha hora para chegar em casa,
já pedimos a pizza cortadinha em pequenos pedaços para facilitar a nossa vida.
Até porque só havia "tamanho único"! Logo, ocupava exatamente a
circunferência do prato. Sem chance para manobras!
- A pizza chegou. Estou colocando no
centro da mesa. Vou colocar os talheres nas mãos de vocês. É assim? - Perguntou o garçon.
Sorrimos e incentivamos:
- Sim, sentiram como não é difícil?
É só questão de sensibilidade e bom senso, não é mesmo?
O garçom concordou comigo. Mas,
apesar da boa vontade, a pizza fora cortada ao sair do forno. Obviamente, os
pedaços - com o puxa, puxa do queijo quente - uniram-se novamente. Fui
utilizando os talheres começando pela borda que estava à minha frente. Já
Waldir preferiu pedir um prato, para que fossem alguns pedaços destacados
colocados. Tudo atendido com certa surpresa!
Ouvimos a voz de um dos repórteres
passando por trás de Waldir:
- Um dos dois peça para ir ao banheiro.
Waldir se habilitou prontamente
levantando o braço. Num flash estafa um dos garçons.
- Amigo, você pode me dirigir até o
banheiro? Colocarei minha mão em seu ombro.
Na ausência de Waldir ouvi uma voz
perguntando:
- Como vai sua filha?
- Ué! Quem me fala?
- Meu filho estudou junto com a sua
um bom tempo. Foi do maternal até... não me lembro.
A maior coincidência! Batemos um
papo e me vieram a cabeça os horríveis momentos que minha filhota e eu passamos
naquela primeira escola por conta da minha cegueira. No ponto mais difícil da
vidinha de minha filha fomos violentamente DISCRIMINADAS pelo uso da bengala. O
"bullying" praticado pelos alunos e dirigentes fora flagrante.
Ninguém via nada! Fomos hostilizados escancaradamente num colégio religioso
onde entramos no maternal e, por não nutrirmos o dom para mártires, nos
desligamos na 6ª série. Como esses fatos são marcantes! Num instante relembrei
e vivi todo um filme! Waldir retornou.
- E aí, como foi Waldir?
- Engraçado! Acho que ele pensou que
precisasse fazer mais do que fez comigo! Foi quando disse que dali em diante
sabia fazer tudo sozinho!
Gargalhamos um bocado. Waldir pediu
a conta. Perguntamos alto e a esmo quem a pagaria!
Logo estava na nossa mesa um dos
repórteres que passou uma nota de cem reais ao Waldir, pedindo-lhe que desse um
jeito de conferir a conta. Em seguida veio o outro para arrematar o prato de
azeitonas que estava quase intacto. De fato - a preço d'ouro - jamais poderia retornar
à cozinha!
Vida salgada! Seriam verdes ou
pretas?
Enquanto degustavam a iguaria sugeri
que, na volta do garçom, fossem descritos, item por item, a conta. Assim o
fizemos.
- Você pode ler a conta para nós?
Tudo fora lido. R$ 19,00, a porção
da azeitona. R$ 38,00, a pizza quatro queijos. R$ 4,50, meu suco de laranja. R$
3,50, o guaraná do amigo. Waldir segurou o troco e pediu, diante dos
repórteres, que o garçom anunciasse o valor de cada cédula, bem como as moedas,
o que fora, gentilmente, considerado.
Os jornalistas entrevistaram, ainda
na mesa, cada um de nós registrando as respostas num gravador. Após os garçons
que nos serviram. O clima foi o melhor possível! Muita informação e
solidariedade registradas com muitas fotos.
Na saída, pedi ao garçom que me
orientasse, espalmando as próprias coxas, quando comandei Jimmy até Waldir. Com
suas mãos em meu ombro direito, saímos contentes por ter conscientizado mais
algumas pessoas em prol da nossa luta. Ao cruzarmos a saída ouvi do metre:
- Recomendações para sua filha!
- Obrigada! Beijos para seu filhote!
- Voltem sempre!
Na calçada novas fotos e
considerações finais. Demos a matéria como hiper bem sucedida, muito embora
tivéssemos apurado TOTAL falta de ACESSIBILIDADE. Sim. Ao falarmos de
ACESSIBILIDADE não nos referimos tão-só a física. Até que essa havia na
entrada, mas ausente no banheiro. Falo, outrossim, da ACESSIBILIDADE NA
INFORMAÇÃO/COMUNICAÇÃO, bem como a ATITUDINAL. Verdadeiramente pudemos conferir
a falta de preparo do estabelecimento no atendimento às PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA.
Porque as autoridades NÃO querem
encarar essa realidade? De fato, o pior cego é o que não quer ver! O ELEITO que
não fez e nem faz por nós (seus mandantes) não merecem ser reeleitos!
Concordam?
Nessa hora lembrei-me de um episódio
de uma série intitulada "OS MONSTROS", onde o personagem principal -
temido por todos - corria num parque público desesperadamente, por considerar
que as pessoas corriam ávidas em sua direção! Um corria do outro. Sociedade
corre do deficiente que, por seu turno, corre da sociedade! Loucura!
Indubitavelmente é o diálogo a única
saída para a real implementação da tão sonhada ACESSIBILIDADE. Não adianta
querer pegar no tranco!
A cultura da hora é a da COOPERAÇÃO.
Fora cultura da superficialidade!
E aí? Amigos leitores, vamos
continuar OMISSOS? Ou vamos agigantar a REDE DA SOLIDARIEDADE?
De bar em bar, de mesa em mesa,
temos que sensibilizar a "malha" hoteleira e afins para que estejamos
preparados para receber o Planeta nos eventos esportivos que vêm por aí. Não
acham?
QUERO MEU CÉREBRO VERDE!
"Sejamos nós a mudança que
queremos ver no mundo". (Mahatma Gandhi)
Carinhosamente.
DEBORAH
PRATES (cachogente) e JIMMY PRATES (pessocão)